sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

O decreto (direitos humanos) do governo e a ausência evangélica


“Na primeira noite eles se aproximam / roubam uma flor / do nosso jardim. / E não dizemos nada. / Na segunda noite, já não se escondem: / pisam as flores, / matam nosso cão, / e não dizemos nada. / Até que um dia / o mais frágil deles / entra sozinho em nossa casa, / rouba-nos a luz, e, / conhecendo o nosso medo / arranca-nos a voz da garganta. / E já não dizemos nada.”
(Eduardo Alves da Costa – No caminho com Maiakovsky, do livro “O tocador de atabaque”)
“Impressiona a latitude do espectro de temas, planos e diagnósticos do 3º Programa Nacional de Direitos Humanos, divulgado há três semanas pelo governo Lula.” Esta frase inicia um dos editoriais da Folha de São Paulo, edição de domingo (10/01/10). O Decreto em si, tirada a lista de ministros que o assinam, como a querer lhe dar legitimidade, mal chega a quatro páginas. Mas é como um iceberg, a maior parte está submersa no Anexo. Ali, constam os eixos orientadores, diretrizes, objetivos e os órgãos respectivos responsáveis pela implementação.
Como uma marolinha que provoca um tsunami, logo no lançamento do Decreto havia poucas manifestações, mas tão logo os inúmeros atores foram se dando conta de que foram incluídos numa peça para a qual não foram convidados e nem ao menos sabiam o roteiro, a começar pelos militares, a coisa espraiou-se e então era os produtores rurais, a imprensa, a igreja Católica e por fim, até ministros do governo que o patrocina. Muito antes, o presidente, como lhe é hábito, negou participação e até disse que assinou sem ler. Que nunca sabe nada, sabemos nós.
Os temas, caso alguém se dê ao trabalho, são variados como se admira a Folha, entre eles questões que, a meu ver, afetam de forma direta a igreja evangélica. Se não vejamos. A diretriz 10 (Garantia da igualdade na diversidade), objetivo estratégico V, que trata das questões que dizem respeito à sexualidade, defende o casamento gay e a adoção de crianças por casais homoafetivos. Neste quesito o decreto é prodigo na defesa dos direitos humanos. O mais grave aqui é o reforço dos famigerados projetos de lei que incumbam nas duas casas do Legislativo Federal (PLC 122/02 – Senado e PLC 5.003-b/01 – Câmara) que entre outras coisas criminaliza mais que opinião, a própria Bíblia, caso alguém ouse declarar qualquer de suas partes que dizem que a homossexualidade ativa é pecado, mesmo durante um culto. Os projetos de lei preveem prisão, multas, etc. Esta posição do decreto contradiz a defesa eloquente que faz da diversidade e o respeito às manifestações religiosas no país.
No que o Decreto defende em favor dos índios, considerando os inúmeros embates contra a obra missionária – ainda está fresca a luta dos missionários acusados de salvar da morte a menina Hakani -, a ser aprovado, o decreto criará mais dificuldade neste trabalho. A mortalidade infantil entre várias etnias indígenas ainda é uma praga no Brasil – sete vezes maior que entre crianças não índias –, por coisa tão terrível quanto a fome, mas políticos e sábios da Funai estão preocupados em guardar o patrimônio cultural indígena.
Quantas escolas evangélicas existem hoje no Brasil? Pois bem, no eixo orientador V, objetivo estratégico II, está dito: “Estabelecer critérios e indicadores de avaliação de publicações na temática de Direitos Humanos para o monitoramento da escolha de livros didáticos no sistema de ensino.” Quem estabelece os critérios e indicadores? Quanto ao que seja direitos humanos, segundo o governo, basta ler as sessenta e tantas páginas do Anexo. Para os autores do decreto não basta que o livro didático ensine corretamente, será preciso estar de acordo com certos cânones que eles definem.
Ainda no eixo orientador mencionado anteriormente, o decreto prevê o patrocínio para o estudo dos movimentos sociais, entre eles, o segmento LGBT e das quebradeiras de côco. O estado brasileiro com maior número de quebradeiras de côco é, por coincidência, o último da federação em todos os quesitos de qualidade de vida que se queira medir. No Maranhão, estas mulheres carregam uma sina maldita de sofrimento e exploração. Fora o artesanato e como registro histórico, as quebradeiras de côco deveriam desaparecer pela melhora da qualidade de vida delas e de seus numerosos filhos. A maioria os criou ou cria na mais abominável miséria, sozinhas, pois os maridos, antes, saiam para os garimpos, agora o fazem para os campos de cana do centro-sul. Alguns nunca voltam. Uma mulher forte quebra até nove quilos por dia de trabalho. Troca-os na venda do povoado por sabão, um pouco de arroz, um punhado de farinha... Se ganha em dinheiro, costumava receber R$0,25 por quilo. Façam as contas.
A diretriz 9 (Combate às desigualdades estruturais), objetivo estratégico III, trata do exercício da cidadania da mulher e defende a aprovação do projeto de lei que descriminaliza o aborto. Segundo eles, “considerando a autonomia das mulheres para decidir sobre seus corpos.” Se isto lhe parece um estranho viés de um documento que propala a defesa dos diretos humanos, não se preocupe, coerência não é exatamente o forte do decreto. Pouco adiante (alínea h), o decreto defende: “Realizar campanhas e ações educativas para desconstruir os estereótipos relativos às profissionais do sexo.” Acreditem, defender a “dignidade” da prostituição é o menor dos males que o decreto pode causar.
Num país em que autodenominados evangélicos são flagrados no que ficou conhecido como a “oração da propina”, igrejas de origem evangélica se confundem com empresas fora da lei, são pegas em transações monetárias ilegais de milhões, misturam-se de forma desavergonhada com o que há de mais vil na política, e em que cada um cuida de si mesmo, não admira o silêncio, a abulia e a distância. As marchas nunca nos darão qualquer relevância, a bandeira da verdade, da justiça e o chamamento profético das autoridades à razão e à seriedade, sim. Estamos dispostos a pagar o preço?

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