sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Fronteira


“A vida acontece dentro da fronteira que define um corpo. A vida precisa de uma fronteira.” (neurologista Antonio Damásio em “O mistério da consciência”)


Li a frase e fiquei embatucado. Mastigava sentidos. Destrinchava possibilidades. Zanzei em torno do conjunto como mosca sobre um grão de açúcar. Ia e voltava. Explico. O neurologista fazia uma digressão sobre a definição da identidade que constitui, nos humanos, a consciência, e que a partir da interação mente-corpo constituirá uma entidade única e irrepetível.
Começou com a ameba. Analisava que o que constitui um indivíduo é este dentro e fora. Nela é a parede celular que fronteiriza seu corpo. O que difere entre este ser unicelular e o ser humano é o saber-se. Naquela somente a entidade moto-vivente. Naquele um moto-relacional que define um eu e um ele(s).
Sabendo-se ou não, homem e ameba tem um impulso interno que modela sua dinâmica fisiológica, regula processos, busca equilíbrio, que o autor sugere como hemodinâmico em substituição à consagrada palavra homeostase. O ser escolhe o que entra no sistema, alimenta-se, e da energia daí recolhida, consuma seu destino pré-programado que se resume à reprodução em um e em que mesmo no outro?
Em nós tudo é muitíssimo mais complicado. Aquele saber-se supõe escolhas e aí o mundo se torna um labirinto feroz de caminhos para perder-se. Especialidade que consagramos em nome da experiência pessoal, daí que só aprendemos conselhos depois de quebrarmos a cara exatamente naquilo sobre o que ouvimos ou vimos tantas vezes em forma de desastre nos outros. E concluímos pacóvios: bem que me disseram. Qual a vantagem disso?
Por incongruente que pareça, há vantagem. A experiência. Nas filigranas íntimas da tessitura da individualidade a experiência vivida será sempre original porque aquele saber-se significará sua construção também, a vida a tomar infinitas formas, embora o enredo superficial cheire a história velha para as quais, os mais velhos, balançamos a cabeça como que cheios de sabedoria. Nós que desdenhamos das dores alheias com um “isso passa”.
Minha pele é minha fronteira. Meu cérebro olha dentro e fora. Vigia. Analisa. Põe guardas onde pensa que sou permeável. E me vejo contrabandista de desejos. Trafico esperanças outras que apenas acalentam momentaneamente, driblam meu cérebro objetivo. Sou eu quem me saboto e tramo armadilhas. Vejo com isso, se não sou ladino suficiente, minha fronteira traspassada, invadida por pequenos invasores que me desequilibram e descaracterizam, tornando-me um igual à turba. Sou, com isso, mimetizado nas gentes que acorrem à horda maior que se desfaz em imagens iguais – dizem: é a moda, é a cultura, é o estar in – porque ignoram o saber de si.
Nem sempre sei o que seja este meu espaço interno e o mundo. Perco-me tantas vezes que já nem sei onde me achar. O que é meu e o que é do outro? Meu, digo, aquilo que ganhou minha identidade porque foi transliterado por minha linguagem particular. Entendido e ressignificado à minha imagem e semelhança. Mas que, no fundo, é só retalho de todos os que me tocaram com palavras, maldades, alegria, perdão, compaixão. 

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