terça-feira, 14 de julho de 2009

Liquidificaram o homem


Uma equipe de cientistas de Newcastle, na Inglaterra, anunciou ter criado espermatozoides em laboratório pela primeira vez no mundo.

Os pesquisadores acreditam que seu trabalho poderia ajudar homens com problemas de fertilidade.

Da BBC - Fergus Walsh


A carta foi encontrada ao lado do corpo de Astenésio. Ele nunca fora um modelo de beleza ou de qualquer outra coisa. Não pela feiura que lhe compunha, nem mesmo pela falta de inteligência, era mediano em tudo.  E aqui reside a maior desgraça da maioria das pessoas, entre as quais Astenésio era um legítimo representante: ser mediano. Já viu coisa mais sem graça do que ser mediano? É uma espécie de limbo oco, insosso, perdido em horas e dias em meio à azáfama do que fazer, cujo sentido raramente um se dá conta.

Astenésio tinha a seu favor uma gota assim de ilustração sobre muitos assuntos, gostava de ler jornais e era das poucas coisas em que se sentia até importante. Mas lá pela meia idade em que estava, só e com poucas lembranças guardadas no alforje que carregava na cacunda, entre estas um casamento desastrado que não durou mais que meses, sentia dificuldade em encaixar-se num mundo rápido e que caminhava para destinos que ele sequer podia sonhar. Deduzo tudo isso da carta encontrada.

Sim, a carta. Perco-me em devaneios filosófico-psicológicos metidos a besta. Transcrevo-a abaixo tal como me foi enviada pela senhoria do apartamento em que morava nosso personagem:

"A quem quer que leia, saudações finadas.

Economizo vosso tempo em procurar razões para o que muitos dirão: gesto tresloucado! É que confundem o estar vivo com bulir-se daqui prali. Não senhores, isto não é estar vivo. Um corpo animado precisa igualmente do oxigênio como de sentido, do contrário torna-se um autômato, situação na qual eu já vivia, de certo modo. Daí que não julguem meu gesto como algo de um louco, excêntrico, certamente, mas não desarrazoado.

Muito bem, alguns rirão do motivo, mas ele apenas representa um gota d'água na caneca velha que sou, quer dizer, daqui a instantes o verbo deve constar no passado, fui. Fui um fracasso completo. Perdi o bonde. Não me adequei. Não sabia dizer as gírias, nunca fui descolado - não é assim que se diz? -, não aprendi as sutilezas de dizer e desdizer na mesma frase, nunca consegui sucesso com as mulheres. Pagar por prazer sempre achei aviltante, mas, sem jeito, uma ou outra vez tive que recorrer ao expediente. Estive sempre anônimo, quase incógnito entre tantos meus iguais.

Sim, a tal gota d'água que desaguou neste ato final. Acabaram de vez com a função masculina, a última coisa da qual eu tinha certeza. Ora, isso o movimento feminino já previa décadas atrás. A ciência agora dá um golpe final. Está banalizado: por trocados, muitos de nós vendem seu sêmen e mulheres compram para inseminação artificial e tem seus filhos como se por uma cissiparidade fosse. Que importa o pai? Alugam-se barrigas, mulheres tornam-se homem a troco de litros de testosterona, se casam com outra, carregam um bruguelo com barba e bigode por nove meses e depois parem.

Mas faltava a última cartada. Cientistas criaram espermatozóides de células-tronco indiferenciadas em placas de petri. Pensei cá comigo: é o fim. Que mais haverá? Não quero ver o tempo em que um homem funcional e senhor de sua função ancestral tenha que ser caçado em alguma floresta tropical perdida - se sobrar alguma. Se comentasse, muitos diriam: bobagem. A descoberta é apenas inicial e ainda há que provar que o feito é prático.

Que mais provas um quer? Pergunto. A questão não é a montagem da fábrica de espermatozóide, que qualquer uma vá à esquina e solicite numa farmácia um sachê com um menino verde, mas na desconstrução de uma forma de ser que nos explica. E o amor?

Receio que trabalharão para completar o ciclo: uma barriga artificial. Por que sofrer os enjoos, as dores, os antojos? Coloque-se a mistura na cuba eletronicamente controlada e espere-se vivendo a vida, no final basta ir à loja pegar o "produto". Mas há que cuidar da coisa. Contrate-se serviços especializados de babycare. Dê-se um nome ao ente e de quando em vez retire-se da caixa para um momento de lazer com o brinquedo. Ah, eles ficam adolescentes. Um chip na cabeça controlará seus impulsos, suas malcriações, suas teimosias em afirmar-se como gente.

Aceito meu fracasso, sou responsável, mas se é para lá que vamos, eu não quero estar lá. Que ninguém ouse me ressuscitar, se não morre gente."

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