terça-feira, 21 de abril de 2009

As lembranças más podem ativar a esperança


A notícia é assombrosa, como muitas outras que cada dia são apresentadas nas mais diversas áreas científicas. O neurocientista Yadin Dudai, do Instituto Weiszmann, em Israel, pesquisou uma proteína cerebral chamada PMKzeta, cujas moléculas tem papel preponderante na fixação das memórias. A partir dela, desenvolveu uma substância, nomeada ZIP, que tem a capacidade de apagar as memórias. A experiência com ratos foi um sucesso.

Logo, artigos entusiasmados – correram mundo antevendo a possibilidade da utilização das duas substâncias, seja para aumentar a capacidade do registro das memórias – imagine isso no aprendizado – ou para esquecê-las. Nesta última aplicação reside o problema. Para além das dificuldades naturais de uma pesquisa tão complexa, a mais grave é que o ZIP não é seletivo. Ele, por bem dizer, formata o disco rígido cerebral inteiro. Mas quem pode duvidar que daqui algum tempo não será aperfeiçoado para identificar exatamente aquela má lembrança, que mesmo passados muitos anos, como águas revoltas, ainda movem o moinho da angústia e do medo?

Dois articulistas da Folha, o psicanalista Contardo Caligaris e a neurocientista Suzana Herculano-Houzel, vêem com reservas esta borracha no cérebro. As razões não se referem à dificuldade atual da aplicação do ZIP, mas a fatores mais, pode-se dizer, humanos. As memórias de uma pessoa, boas e más, constituem nossa história pessoal, são os que nos diferenciam uns dos outros e fazem a riqueza do infinito particular de cada um.

Apagar as memórias – suponhamos apenas as más – é deletar parte do que se é, pois não há dúvida que elas também nos moldam e está ao nosso alcance um meio de trabalhar aquelas que se tornaram um fardo muito difícil de carregar. As terapias psicológicas têm nelas, na maior parte das vezes, seu barro de trabalho. É o que se chama de ressignificação, que nada mais é que lançar um novo olhar – de frente – para a lembrança e transformá-la num tijolo componente do edifício e não mais o entulho que ocupa espaço desnecessário e não ajuda na estética nem na funcionalidade da casa.

Quantas memórias você carrega, que somente lembrar lhe percorre um calafrio pela espinha ou uma revolução no estômago e você rapidamente trata de esquecer e ocupar sua mente com outra coisa? Cada um de nós deve ter as suas. Uma boa parte de nós consegue conviver com isso, para outros é muito sofrido, a tal ponto de se chegar a pensar num apagão definitivo, a morte. Entretanto, esquecer não é possível, exceto por uma demência precoce. Resta-nos lembrar da forma correta.

Uma passada pelos profetas, salmos, as palavras de Jesus, não raro leremos: lembrai-vos... não esqueçam... rememorem... em memória de. São palavras e locuções que tem o propósito óbvio de trazer à lembrança fatos importantes que não podem ser esquecidos, sob pena daqueles a quem estas palavras eram ditas fracassarem ou se afastarem de valores importantes. Isto vale para o mundo particular no plano terapêutico/espiritual agora.

Claro, isto é válido depois do confronto com sua história pessoal, a atitude de enfrentar no momento a lembrança negativa e lutar com ela e sofrê-la outra vez, mas não mais no papel de vítima, um joguete nas mãos de quem lhe causou mal, mas como alguém que quer se reconciliar consigo mesmo, isto no plano terapêutico. Mas é exatamente isso que faz o encontro com Jesus. E afirmo, numa dimensão que chega aos seus níveis atômicos. No processo, se enfrentam as trevas pessoais em direção à luz que dele emana. DEle um se reconhece perdido, desgarrado. NEle um se vê tal como é e acreditem, nenhum de nós sai bem na foto. Não existe um que tenha um bom ângulo. Nem seu sorriso mais encantador o fará parecer melhor. Não porque ele nos condene e não tem coisa mais feia que cara de réu, mas porque antes dele, estamos todos desconstruídos, parecemos uma imagem cubista

O encontro promove o reconhecimento de valores e de uma lei primordial que foram quebrados: deixou-se de ser parecido com ele, perdeu-se a originalidade para ser este simulacro de ser, eivado de toda sorte de arranjo para funcionar. Neste sentido, somos todos gambiarras ambulantes.

Alumbrados e em temor, pedimos perdão. No quê O magoamos? Agredimos sua santidade com nossa prática do mal. Ferimos seu amor com nosso desamor e violência. Nós lhes demos as costas. Neste encontro único, engolfados em emoções e a mente que alcança sua plena lucidez, recebemos perdão. Um peso desaparece, a culpa se foi, tornamo-nos filho da esperança.

Mais profundo, mas mantendo relação de proximidade com a terapia psicológica, o perdão, o renascimento, redimensiona as memórias. Estas perdem sua força. Estarão todas lá, você as vê, mas elas, num certo sentido, ainda que causem alguma tristeza, não lhe dizem mais respeito e só são capazes de mover as engrenagens de um profundo conforto e gratidão a Cristo. Você foi encontrado.

Jeremias, profeta por quem tenho particular admiração, tem uma fala interessante. “Eu lembro da minha tristeza e solidão, das amarguras e dos sofrimentos. Penso sempre nisso e fico abatido. Mas a esperança volta quando penso no seguinte: O amor do SENHOR Deus não se acaba, e a sua bondade não tem fim. Esse amor e essa bondade são novos todas as manhãs; e como é grande a fidelidade do SENHOR!” (Lam 3.19-23 – NTLH)

Com o ZIP no cérebro, todo um maravilhoso mecanismo de gratidão se perde que é fruto, justamente, das más lembranças que se quer apagar, mas que foram ou perdoadas ou redimensionadas e rearranjadas na nossa história produzindo esperança e fé que enfrentarão suas visagens, forjando cada dia uma novo caminhar.

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