Com seus nove anos, é um leitor voraz. Adora histórias. Que outro livro tem tantas histórias intigantes e incrivelmente aventurescas quanto a Bíblia? Sei que esta é uma razão porque gosta de lê-la, e o fato é que pegou o hábito e toda noite lê um tico assim. No momento, lê o Evangelho de Mateus. Perguntado se tinha lido sua porção do dia, ele respondeu positivamente. O que tinha lido? Perguntei. Do adultério, respondeu com uma segurança inabalável.
Como se sabe, este subtítulo destaca a parte do famoso sermão da montanha onde Jesus se dedica a ensinar sobre adultério, por suposto. A resposta aguçou minha curiosidade. O que ele teria entendido? Você sabe o que é adultério? Sei, disse calmamente. Claro, eu quis saber e ele afirmou tão categórico que, por momento, quase acreditei em sua versão. Significa: não adorarás outros deuses.
Ri antes de pensar enquanto ele me olhava confuso, afinal, tinha certeza de que sua definição era a certa. Tive que explicar o que adultério era naquele exato contexto. Ele fez um ah... ensimesmado. Era sinal de que teria compreendido. Suponho, porém, que preferia a versão de seu próprio dicionário.
O menino, em sua intuição infantil, acertou na definição de adultério. Os profetas não se cansam de dizer que o povo adulterou com outros deuses, o que supõe ter abandonado o Deus-marido. E as descrições chegam a níveis bastante detalhados como a figura dantesca da esposa-nação adulterina com as vergonhas expostas, abandonada pelo amante, etc. A aula magna sobre o tema, com esta perspectiva, está no livro de Oséias.
Duas coisas me ocorrem: adultério tornou-se mais um vício de costumes do que um pecado. Os adúlteros de hoje não sentem que tenham ofendido a Deus, quando muito, à pessoa a quem traíram. Pesquisas revelam de vez em quando, em percentuais bastante chamativos, que homens e mulheres são igualmente praticantes da traição amorosa, um pouco mais estes que aquelas. Não por um pendor especial dos homens para a infidelidade conjugal, mas por cultura machista e indigente justificativa de que macho que é macho...
O adultério é, atualmente, algo de foro íntimo, das relações pessoais. Seguindo a evolução dos costumes, até foi banido do Código Penal como crime. É curioso que a mesma sociedade que furtivamente diz que adultera é a mesma que o condena fervorosamente em público. E há os que fazem galhofa com o tema, chegando a haver “clubes de cornos” em alguns lugares do país. Nem se fale das músicas “dor-de-cotovelo” que, entre outras coisas, se inspira nas traições.
A segunda coisa que me ocorre é se seria possível haver adultério com Deus. Explico, não confundo as coisas. Quero dizer, usa-se o nome de Deus, mas os fins são manipulados para outras coisas. Alguns começaram com exorcismos apoteóticos na tv, caçada a demônios em terreiros e aos poucos o eixo foi mudando para oferecer um produto inacreditavelmente bem aceito: promessa de vida melhor, cura de doenças, sucesso financeiro. Tudo aqui mesmo, ao alcance da mão na esquina mais próxima. Vendem milagres - O que nove entre dez igrejas ofertam –, não à toa algumas têm a expressão no próprio nome, quando não, no lema. E estes tão rápidos e impossíveis que faria corar os santos católicos São Judas Tadeu e Santo Expedito que, segundo dizem, tem boa experiência na área. A disputa agora no marketing religioso é para provar que naquele espaço existe algo como que um canal direto com as vastidões celestiais e a resposta é certa. Nada dispendioso, por módica quantia...
Talvez fosse hora de um adultério ao contrário. Seguindo a lógica do pequeno leitor, adulterar com Deus mesmo. Trair estes demiurgos que levam seu nome, como remédios falsos vendidos por camelôs e mais representam egos inflados, santos do pau oco, vendilhões de quinquilharias espirituais, aspirantes a diabo em seu orgulho e loucura.
Traiamos estes deuses pequenos, Simões que se arvoram grande poder. Cheguemo-nos à simplicidade de uma vida que acontece no tempo, no caminho estreito, na luta diária sob a graça, na produção do novo ser no fazer o bem, sabendo que cada dia tem seu próprio mal.
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