A resposta seria desconcertante para nós: Meu nome é legião, porque somos muitos. O diálogo em si, já seria algo fora de prumo, embora os canais de TV mais baratos, naqueles horários da coruja, ainda apresentem – agora bem menos, é verdade – espetáculos dantescos de diálogos supostos entre um exorcista e um endemoninhado com sua voz contorcida e roufenha. Ou os demônios já não posseiam ou foram exterminados pelas ordens e determinações que antes gorgorejavam pelas telinhas. Suspeito, porém, que já não dão ibope.
É sintomático que os demônios tenham saído de cena. Os paladinos dos exorcismos já não clamam exaltados e cheios de autoridade impostas a bordoadas e puxões de cabelo. Os demônios agora sãos outros: os invejosos, os inimigos humanos, que desejam e praticam o mal com suas bruxarias e esconjuros. Algo mais impalpável e sujeito a milhões de versões. O paraíso, nestas contrafações religiosas, não mudou. Ainda se resume a carro, casa, bom emprego e uns dois cartões de crédito que ninguém é de ferro.
Um diabo, mesmo uma legião, é agora só retórico. Já um ser humano como inimigo, em quem se pode projetar todas as mazelas, medos e desconfianças e está ali, ao alcance da mão, ao lado no trabalho, dividindo a mesma cama e teto é melhor, diabo sem chifres, mais satânico que os verdadeiros e a quem se conhece por nome e sobrenome.
Não é irônico que o endemoninhado se sinta atraído por Jesus? Estava ele em seus afazeres: habitar sepulcros, gritar pelos ermos e montes, mutilar-se com pedras, uma terrível desconstrução da figura humana naquele homem. De repente sente-se compelido a correr em direção ao Cristo. Quereria defender sua posse, seu domínio, seu território? Não, antes ele adora, prostra-se. Suplica choroso. Que tenho eu contigo? Não me atormentes.
Reagia à ordem: Sai deste homem, espírito imundo! Surpreendentemente é perguntado: qual é o teu nome? Não implica um colóquio, entabular uma conversa. Saber o nome é dominar. Delinear a fronteira do outro. É reduzi-lo ao seu tamanho real.
A despeito de nomearem demônios desde a Idade Média, estes aqui não se nomeiam, se dão como nome um coletivo. Curioso. Coletivo iguala, não personifica, torna os sujeitos que o compõem uma massa amorfa. Esta é a característica principal dos demônios, não ter identidade, que é o que supõe a pessoalidade, a parecença com algo ou alguém. Referencia, aponta uma origem e um destino de realização. Eles são só uma multidão em desespero e tanto serve o abrigo num corpo humano como numa vara de porcos. É como quem tem embotado o paladar.
Os sem identidade não distinguem também nada no outro nem na paisagem. Não tem sentido estético ou de beleza. Tanto faz uma amanhã de sol como a noite mais escura. É preciso estar constituído, para emitir sentido, variegar vontades, criar, não perder-se.
Os sem identidade trabalham o tempo de forma aleatória. Não percebem as instâncias de passado, presente e futuro. Vale apenas aquele milissegundo ligado ao que seja, única forma de se sentir existente. Os demônios, o texto não sugere, não parecem saber o que acontecerá aos porcos ou se sabem, nada lhes importa, sua existência é parasitária e para efetivá-la qualquer coisa ou lugar onde possam alojar-se é válido, mesmo que ato contínuo à possessão ele se destrua com eles dentro.
Seu rogo de que não os mandassem para fora do país me intriga. Não passeiam pelo mundo como aquele diabo em Jó. Que haveria naquela região que os, digamos, alimentava? Sabiam que havia mais pessoas a quem poderiam, depois, possuir? Que relação haveria entre aquela terra e sua existência, não são os demônios seres espirituais e prescindem, pois, do que é físico?
A reação das pessoas do lugar sugere uma pista. Quase todos casebres vazios prontos para habitação. Os demônios, como se sabe, são os sem-teto deste mundo paralelo que nos tangencia, as casas-gente são sua porta de entrada aqui.
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