quarta-feira, 1 de abril de 2009

A graça de viver com o pão de cada dia


Vários cartões postais mundo afora ficaram uma hora em total escuridão como parte de uma campanha mundial para chamar a atenção para o aquecimento global. A campanha chama-se 'Earth Hour' (Hora da terra) e teve quase três mil cidades inscritas este ano, dez vezes mais que no primeiro ano do movimento em 2007.

Evidente, o apagão é um ato simbólico e não tem conseqüência prática com relação ao problema ou às causas diretas do aquecimento. Parece não haver mais dúvida quanto ao fenômeno causado pelo homem e é raro encontrar quem argumente de forma contrária. A quase unanimidade, contudo, não consegue alterar a desabalada carreira com que as calotas polares derretem, o clima pareça louco, ora chovendo demais, ora de menos. Nuns lugares muita neve e em outros nada. Calor e frio se alternam, seca e excesso de água, não de forma rítmica e natural, mas como se a terra desse imensos soluços.

Além de todos os medos que os homens têm que lidar, este, de forma crescente, vai ocupando seu espaço e reforçando a fala dos mais alarmistas a cada novo desastre espetacular que tínhamos visto apenas em versões tímidas. Os canais pagos Discovery, National Geographic, tem dedicado com freqüência programas inteiros para analisar os efeitos e as possíveis realidades que se instalarão em pouco tempo, inclusive com mudanças radicais no mapa de todos os continentes.

A figura de um homem numa rua de uma grande metrópole ou numa de suas praças apinhadas de gente, com um cartaz, olhos injetados, bradando por algum tipo de fim de mundo quais Antonios Conselheiros enlouquecidos, dizendo que o mar vai virar sertão e o sertão vai virar mar me vem à mente. A diferença agora é que os passantes que ignoravam impacientes ou riam de tal quadro, agora param embasbacados, crédulos, inquietos.

Haveria a possibilidade de outra espécie de dilúvio? Dizem os entendidos, ainda para negar o primeiro, que toda a água existente na terra não seria suficiente para encobrir os montes, donde é impossível o primeiro, quanto mais um segundo. Longe de pensar que o aumento dos mares não causarão problemas. Causarão. Centenas de ilhas desaparecerão sob as águas. Cidades na orla marítima perderão imensas áreas mais baixas.

A questão, entretanto, não é essa. Não se trata dos prejuízos financeiros, ou transtornos com os flagelados do aquecimento, isso se resolve. A questão está nas bases que se estabeleceu para viver hoje. Toda nossa lógica de vida é capitalista. Alguém tem que ter algum tipo de lucro, enquanto todos os demais são reduzidos a consumidores. As relações pessoais se guiam por esta matriz, salvo algumas poucas. A regra básica é: farinha pouca, meu pirão primeiro.

A grande crise que, por outro lado, atormenta governos e desesperam capitalistas, ainda não tem uma explicação ou razões bem definidas, são muitas. Mas, perceba. É a exaustão de um modelo, não sem a ajuda prática de um golpe financeiro cataclísmico por aqueles que ganham bilhões e nunca se cansam. Este sistema corrompido e corrompedor financia o fabril, dito real, que precisa que cada um de nós continue comprando, numa espécie de moto contínuo desesperado. Um carro hoje, chamado bem durável, tem uma expectativa de uso de meros 2,3 anos. A desvalorização é enorme e logo é necessário comprar outro. É preciso ter vários celulares, computadores em casa e para carregar. E assim, cada objeto nos confere uma característica, um status que diz quem somos e com que valor seremos aquilatados.

As propagandas nos bombardeiam modelando nossa forma de pensar sobre nós mesmos. Sou à medida que consumo e a este, sorrateiramente ou nem tanto, se atrelam as idéias mais caras aos homens: liberdade, satisfação, prazer, conforto, tranqüilidade. “Tudo isso te darei se prostrado me adorares”. Mas no que me tornarei ao receber tal dádiva? Um objeto. A estrutura dos mundos socialistas transformam o homem em coisa, os capitalistas o convencem a se tornar de “livre” e “espontânea” vontade e chamam a isso de capacidade de escolha, livre arbítrio. Ser é poder escolher entre dúzias de cores do mesmo tênis e pagá-lo de muitas formas diferentes.

Não admira o vazio consumidor que se nos apegou como sarna. Um comichão devorador que, no lugar de coisa melhor, nos empurra a continuar rodando no carrossel, na ciranda de luzes e aparências que nos causam vertigem. E olhamos para nós e algo diz que este estranho incômodo não passará e que quanto mais temos, mais pobres nos sentimos. Na verdade, só alguns sentirão esta dor de não ser, pois nisto tudo se resume. Na maioria, é tal o embrutecimento que sequer se dão conta a que foram reduzidos.

Logo, o aquecimento global é apenas a sombra de uma hecatombe, o sacrifício de cem bois que somos nós mesmos, transformados em gado miúdo, tangido ao sabor de forças que nos dizem o que é bom vestir, comer, viver. Quando questionaremos este padrão empobrecedor que nega até os menores valores do ser humano? Fico alarmado que em várias frentes, aqueles que deveriam perceber isso, falo dos cristãos, por todos lados estão cada vez mais mimetizados na busca por um tipo de realização que canta e decanta as bem-aventuranças do poder de consumir como retrato acabado de um demiurgo que Jesus não teve qualquer dúvida de chamar Mamom.

Faz sentido dizer que alguns de nós vivemos numa consumição porque aquela coisa linda e reluzente que tanto deseja não pode ser adquirida. Quem é consumido aqui? A nova realidade pede um estilo de vida simples. Não falo em nos tornarmos todos uns tipos naturebas xiitas, tampouco naqueles que nos antecederam, criticados por Max Weber, que só pensavam em acumular e trabalhar de forma ensandecida. É preciso rever valores esquecidos. Partilhar, dividir, viver com o suficiente, e então haverá espaço para adorar e dar-se a Deus sem concorrência ou coração dividido. 

Uma oração simples me vem agora à lembrança: “Eu te peço duas coisas, ó Deus. Não me negues isto antes de eu morrer: Afasta de mim a falsidade e a mentira. Não me dês riqueza, nem pobreza. Concede-me apenas o meu pedaço de pão, para que, saciado, eu não te renegue, dizendo: ‘Quem é Javé?’ Ou então, reduzido à miséria, chegue a roubar e profanar o nome do meu Deus.” (Provérbios 30.7-9 – EP)

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